INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS (1970)*
Cildo
Meireles
Eu me
lembro que em 1968-69-70, porque se sabia que estávamos começando a tangenciar
o que interessava, já não trabalhávamos com metáforas (representações) de
situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado,
o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era
outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele
culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam
provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar
com a idéia de público. Naquele período, jogava-se tudo no trabalho e este
visava atingir um número grande e indefinido de pessoas: essa coisa chamada público.
Hoje em dia, corre-se inclusive o risco de fazer um trabalho sabendo exatamente
quem é que vai se interessar por ele. A noção de público, que é uma noção
ampla e generosa, foi substituída (por deformação) pela noção de
consumidor, que é aquela pequena fatia de público que teria o poder
aquisitivo.
Na
verdade, as "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram da
necessidade de se criar um sistema de circulação, de troca de informações,
que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado. Uma língua. Um sistema
que, na essência, se opusesse ao da imprensa, do rádio, da televisão,
exemplos típicos de media que atingem de fato um público imenso, mas em cujo
sistema de circulação está sempre presente um determinado controle e um
determinado afunilamento da inserção. Quer dizer, neles a 'inserção' é
exercida por uma elite que tem acesso aos níveis em que o sistema se
desenvolve: sofisticação tecnológica envolvendo alta soma de dinheiro e/ou
poder.
As
"Inserções em circuitos ideológicos" nasceram com dois projetos: o
projeto "Coca-Cola" e o projeto "Cédula". O trabalho começou
com um texto que fiz em abril de 1970 e parte exatamente disso: 1) existem na
sociedade determinados mecanismos de circulação (circuitos): 2) esses
circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao mesmo tempo são
passíveis de receber inserções na sua circulação: 3) e isso ocorre sempre
que as pessoas as deflagrem.
As
"Inserções em circuitos ideológicos" surgiram também da constatação
de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas
que você recebe, copia e envia para as pessoas) e as garrafas de náufragos
jogadas ao mar. Essas práticas trazem implícita a noção do meio circulante,
noção que se cristaliza mais nitidamente no caso do papel-moeda e,
metaforicamente, nas embalagens de retorno (as garrafas de bebidas, por
exemplo).
Do
meu ponto de vista, o importante no projeto foi a introdução do conceito de
'circuito', isolando-o e fixando-o. E esse conceito que determina a carga dialética
do trabalho, uma vez que parasita ria todo e qualquer esforço contido na essência
mesma do processo (media). Quer dizer, a embalagem veicula sempre uma ideologia.
Então, a idéia inicial era a constatação de 'circuito' (natural), que existe
e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na verdade, o caráter da
'inserção' nesse circuito seria sempre o de contra-informação.
Capitalizaria a sofisticação do meio em proveito de uma ampliação da
igualdade de acesso à comunicação de massa, vale dizer, em proveito de uma
neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado),
que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e
anestesia (circuito), considerando-se consciência como função de arte e
anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normalmente
é amplo, mas é alienante (ado).
Por
pressuposto, a arte teria uma função social e teria mais meios de ser
densamente consciente. Maior densidade de consciência em relação à sociedade
da qual emerge. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Tal
qual existe hoje, a força da indústria se baseia no maior coeficiente possível
de alienação. Então as anotações sobre o projeto "Inserções em
circuitos ideológicos" opunham justamente a arte à indústria.
(...)
Porque tem uma transação em artes plásticas que se baseia ou na mística da
obra em si (embalagem: tela, etc.) ou na mística do autor (Salvador Dali ou
Andy Warhol, por oposição, são exemplos vivos e atuais): ou parte para a mística
do mercado (o jogo da propriedade: valor de troca). A rigor, nenhum desses
aspectos deveria ser prioritário. No momento em que há distinções nessa ou
naquela direção, surge a distinção de quem pode fazer arte e quem não pode
fazer. Tal como eu tinha pensado, as "Inserções" só existiriam na
medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Quer dizer, o trabalho só
existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Uma outra coisa que se
coloca, então, é a idéia da necessidade do anonimato. A questão do anonimato
envolve por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o
objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual você não
poderia ter nenhum tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras
coisas: primeiro, atingiria mais gente, na medida em que você não precisaria
ir até a informação, pois a informação iria até você; e, em decorrência,
haveria condições de 'explodir' a noção de espaço sagrado.
(...)
Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação,
tornam-se um triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer idéia que você
colocar lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou
prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de
arte. Mas com a platéia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais
importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que
as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova idéia uma nova linguagem
para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível
do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço
consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de
uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a
metáfora da pólvora - trabalhar com a pólvora mesmo.
*Extraído do depoimento de CM registrado na pesquisa Ondas do corpo, de Antônio Manuel Copy-desk e montagem do texto: Eudoro Augusto Macieira. Publicado no Livro "Cildo Meireles" da FUNARTE. Rio de Janeiro, 1981.